23/09/18

Parque Temático

Na semana que passou os taxistas invadiram (e ainda invadem) a(s) cidade(s) com as esperadas consequências a nível do trânsito, e falo sobretudo de Lisboa: impossibilidade de circular nalgumas ruas/avenidas, demoras e filas. O trânsito é hoje uma espécie de inferno dos tempos modernos. Ninguém o quer, ninguém gosta, evita-se quando se pode. 

Eu disse ninguém o quer? Pois, parece lógico pensar que realmente ninguém o deseje, mas infelizmente não é esse o caso. O último sonho mau (os sonhos maus deveriam ter ficado na infância ... mas como já nada é como se esperava que fosse) do Presidente da Câmara de Lisboa, agora que ultrapassou esse outro sonho mau de há uns anos que foi fazer da Segunda Circular uma avenida urbana com apenas duas faixas de rodagem, semáforos, bem como árvores com passarinhos chilreantes e flores na primavera no meio, é criar uma faixa de rodagem para Bus na A5. Tão boa é esta ideia que – segundo as notícias – ele pretende estendê-la a outras vias de acesso à cidade de Lisboa (ver aqui e aqui). 

Lembrando António Guterres, segui aquela velha máxima de “é só fazer as contas”, e percebi que uma vez que a largura das vias é limitada, e a menos que se façam grandes obras estruturais em todos nos acessos à cidade, fica evidente que a criação de uma faixa para Bus passa pela eliminação de uma faixa normal de circulação. Assim, crê ele, naquele estado de quem se sente iluminado mas apenas teima em não acordar desse seu sonho mau, as pessoas que vêm diariamente em carros para Lisboa terão mais incentivos para usarem os transportes públicos que circularão mais rapidamente. A cidade terá menos carros e, por isso, menos trânsito. (Dá vontade de rir pensar na A5, na IC19, na A1 ou na A2 com menos uma faixa de rodagem, não dá? Dá vontade de rir pensar que assim a cidade terá menos trânsito, não dá?). 

Mas tentarei não rir muito e olhar para as coisas como elas são, que é sempre uma boa maneira de olhar para elas. Impõem-se de imediato algumas questões. Afinal que infraestruturas de transporte público dispõe o cidadão de Lisboa como alternativa de mobilidade para a cidade e dentro da cidade, neste seu sonho de libertar a cidade dos carros dos cidadãos? Várias linhas de comboios que sirvam amplamente os conselhos vizinhos para todos aqueles que da periferia querem chegar ao centro da cidade? Uma ampla rede de metro, eficaz, pontual e sobretudo que cubra toda a cidade e um pouco mais além? Uma rede de autocarros eficientes e pontuais na cidade e concelhos limítrofes? Interconectividade abundante e eficaz entre diferentes redes de transportes? Preços razoáveis? Como é que respondendo ‘não’ a todas estas questões, Fernando Medina pensa que poderá libertar a cidade dos carros? Sem, pelo menos uma rede de metro que cubra amplamente toda a cidade (de norte a sul, de este a oeste para que não restem dúvidas) é impossível sonhar em ‘libertar a cidade dos carros’.

Indo um pouco mais além neste quadro de ‘libertação’ da cidade, coloco outra questão: porquê e para quê, exactamente, essa vontade de libertar a cidade dos carros? Como os carros não se deslocam sozinhos, nem pelas suas vontades autónomas, presumo que queira também libertar a cidade das pessoas, das que aí vivem a sua vida. Hoje ter casa começa a ser difícil, mas só mais um esforço e criam-se também todos os postos de trabalho longe do centro, exceptuando aqueles que servem o turismo. Fica então a cidade livre para turistas, para o lazer, para passear, ver as vistas, ir aos restaurantes, frequentar actividades culturais, outros eventos, etc. Ficamos todos com um excelente e sofisticado parque temático, perdão, com uma bela cidade, para usufruir ao Domingo à tarde em directa concorrência com os centros comerciais da periferia. Um futuro promissor. 

O desejo de infernizar a vida das pessoas tornou-se num impulso subjancente a tantas decisões políticas. É evidente esta estranha tendência, esta necessidade de culpabilização nos tempos modernos em que, ao mínimo pretexto, se castiga e aponta o dedo ao cidadão: ou porque usa carro, ou porque se endivida, ou porque compra e vende casas com mais valia, ou porque gosta de bebidas doces, ou porque tem sucesso. Ar dos tempos.

11/09/18

Call Me By Your Name

Da colheita dos Oscars deste ano. Vi na altura Darkest Hour e uns meses depois Three Billboards Outside Ebbing, Missouri, que são filmes interessantes e competentes, este último muito por causa de Frances McDormand. Recentemente, neste período estival em que sempre sobra um pouco de tempo, vi outros dois: Phantom Thread e Call Me By Your Name. Phantom Thread, um filme formalmente perfeito, todo feito de detalhes, contido, fechado, inusitado e com magníficas personagens e interpretações, foi sem dúvida o meu favorito, mas não é dele que vou falar porque

Call Me by Your Name foi o que mais me intrigou, apesar do filme ter sido o que esperava que fosse, depois de lidas referências na imprensa. É um bom filme, em que se destaque a interpretação de Thimotée Chamalet, mas o que mais me marcou foi o título do filme e que mesmo antes de o ver me surgia recorrentemente ... afinal é tão fácil dizer 'call me by your name'. 'Chama-me pelo teu nome', é uma coisa pesada, que não se diz com facilidade, e que, dizendo-o, percebemos que tropeçamos nas palavras, que elas soam estranho, desconfiamos. 'Call me by your name' é simples, e sem pensar muito a frase solta-se, as palavras saem fáceis como um mantra, sem me demorar no que que elas significavam, até que vi o filme.

Como disse, pouco me surpreendeu, nem a história, nem o local, nem as opções formais nomeadamente fotográficas, nem o despertar do desejo (paixão, romance), o motor da intriga. Também sabia tratar-se de um filme onde impera a sensualidade, e assim o confirmei. A personagem delirante de Elio leva essa sensualidade a níveis surpreendentes, e é neste contexto de excesso, fantasia desmedida e delírio que call be by your name aparece de uma forma quase transgressiva. Chama-me pelo teu nome, é um pedido estranho e de uma sensualidade imensa que quebra as barreiras entre o ‘eu’ e o ‘tu’; ficando no ar (e na tela) a sugestão ou a evidência de que Elio e Oliver se entregam, se misturam, esbatendo as identidades. Chega a ser quase perverso esse apelo ao abandono da sua identidade, mas a frase funciona nesse clima criado no filme, e se funciona tão bem é porque se trata de uma relação homossexual. Numa relação heterossexual o acto de pedir “chama-me pelo teu nome” (ou te chamar pelo meu nome), seria sempre mais retórico e mais forçado, pois os nomes são reveladores do sexo, e nunca teria a permeabilidade, fluidez e ambiguidade que, no caso do filme, se consegue.

Call Me By Your Name. Esse título, essa frase que emana do contexto sensual do filme, tem uma força extraordinária, e quando, nos momentos finais, os ouvimos calling you by my name, todo o peso e densidade do significado do título, surpreendentemente leve e fácil de dizer, faz-se sentir.

09/09/18

(Afife 2018)

Arquivo do blogue

Acerca de mim

temposevontades(at)gmail.com