04/06/19

A Última Estação

Li há umas semanas, em pouco tempo e porque os livros estavam à minha frente, dois contos de Agustina Bessa-Luís. Estações da Vida (com prefácio de António Barreto) nem é bem um conto nem uma novela, no sentido em que não é uma sequência narrativa, mas funciona como um painel de azulejos, de alusões, episódios, personagens, vidas cruzadas, todos olhados com perspicácia, humor e compaixão (partilhar a paixão e não ‘ter pena’) e tendo como ponto de partida as Estações ferroviárias da linha do Douro que Agustina mais frequentava na infância e juventude. A Torre, um livro pequeno de capa dura e autografado pela autora, é hoje um livro raro. É um pequeno condensado de Agustina, do seu olhar, humor fino, perversidade. 

Lembro-me do que relembrei e lembro-me de na altura ter pensado como é divertido ler Agustina. Como é imprevisível, como a forma inusitada com que tece umas histórias nas outras e nos deixa por vezes sem norte. Como me rio sempre que leio algum dos seus famosos aforismos, truísmos ou sentenças, dos mais sensatos aos mais absurdos e aparentemente despropositados. Como as suas personagens femininas são fascinantes, e como quase sempre e de forma mais ou menos insidiosa, mais ou menos perversa as percebermos motor da narrativa. Como o seu olhar é impiedoso e inclemente perante a patetice. 

Tenho que ler mais vezes Agustina Bessa-Luís. Uma escritora de outros tempos, e tão de agora.

07/05/19

Ópera e Bicos de Pato

Gravo muitas vezes concertos e óperas do canal Mezzo que depois, a meu tempo, vou vendo. Recentemente vi uma gravação de há meses da ópera Evgene Onegin de Tchaikovsky, baseada na obra homónima de Pushkin. Ao contrário do que se passa com algumas óperas de Verdi em que as histórias são complexas e o enredo se enreda e desenreda, esta é o contrário, é simples, mas nem por isso deixa de ter momentos de grande tensão psicológica e dramática. O herói, Onegin, é frio, frívolo e cheio de ‘ennuit’, a heroína, Tatiana é jovem, romântica e ingénua. Como é óbvio, os cantores de ópera são verdadeiros actores vestindo a pele e encarnando as suas personagens e através da voz, expressões, gestos, postura transmitem toda a emoção e intensidade que é pedida pelo compositor e que o espectador espera. Assim, fica um sabor a pouco quando não experimentamos as emoções prometidas pela peça. Foi o caso desta versão (já vi de que gostei mais) que me pareceu superficial e fria (até pelos cenários e produção), mas foram sobretudo os protagonistas que me desapontaram. 

Não sei o suficiente de canto lírico e ópera para fazer uma crítica, mas fica a impressão que que os protagonistas me causaram. Ele, hirto, formal e frio (até para interpretar uma personagem fria), ela era feia a cantar – os primeiros planos que as filmagens nos dão são responsáveis por tanto impressionismo – pois tinha uma forma estranha de mexer a boca e projectar os lábios e, de perfil, tinha uma boca de pato. Mas não ficou por aí a estranheza pois enquanto cantava – nomeadamente naqueles momentos de maior intensidade dramática - percebi que a sua testa não fazia nenhum tipo de ruga ou vinco, mas ondulava como se tivesse sido enchida com um líquido gelatinoso. As rugas de expressão não existiam, existiam sim, uns volumes estranhos dados pelas ditas ondas. 

Boca de pato, ondas na testa numa cantora que estava longe de ser ‘velha’ (na ópera é comum mulheres de 50 anos interpretarem jovens ingénuas de 16 ou 17, como sabemos) e que tinha uma figura jovem, e que, aparentemente, não teria necessidade de recorrer a certas intervenções estéticas na cara. Tento sempre perceber o que motiva uma mulher ou homem a voluntariamente desfigurarem-se. Vejo apresentadoras na televisão portuguesa com alterações substanciais nos traços do rosto, testas lisas que parecem ter sido engomadas, maçãs do rosto demasiado cheias, lisas e luminosas, lábios exageradamente volumosos (apesar do volume ser variável, aumentando e diminuindo, de acordo com as intervenções feitas), por vezes até com um lado da boca com mobilidade visivelmente reduzida. As expressões da cara são muito alteradas, e facilmente se percebe que o tipo de intervenções feitas. Tantas vezes as bocas são, de perfil, verdadeiros bicos de pato e a dicção é notoriamente alterada. 

A passagem do tempo, ou dizendo-o de uma forma menos poética, o envelhecimento pode não ser fácil, mas é inexorável desde o momento do nascimento. Por muito botox que se ponha na testa, a pele envelhece, as rugas estão lá, as pessoas envelhecem. Por muitos enchimentos que se ponham nas maçãs do rosto ou nos lábios, a cara modifica-se com a idade, e as marcas da passagem do tempo estão lá, por trás dos enchimentos. Custa-me ver essas caras que voluntariamente se desfiguram, mas o que me custa mesmo é perceber que nada disso surpreende, que já é norma, até diria mais, que já se espera e se aceita tranquilamente que as pessoas (mulheres) passem por esses processos de modificação da fisionomia do rosto, na vã luta contra o tempo. A sabedoria, que supostamente vem com a idade, está agora substituída por uma equipa de técnicos e técnicas dermatológicas

28/04/19

(Porto Abr/19)

20/03/19

Raposas ...

As notícias em letras grandes sucedem-se a um ritmo frenético. Ainda não nos refizemos de uma que a outra se sucede a prender a nossa atenção. Um dia havemos de nos cansar de vez e deixar de ler e ouvir notícias. Mas essa é uma longa conversa, ou melhor, uma longa reflexão. 

Ontem um tiroteio numa mesquita na Nova Zelândia (para quando uma comoção mundial para as mortes de cristãos nas igrejas no Egipto ou no Paquistão, entre outros locais hoje impróprios para cristãos?), ou um outro tiroteio num eléctrico em Utrecht que se pensou ser querela familiar, mas afinal já não será e o espectro do terrorismo a espreitar. Hoje, tal como ontem, são ainda as cheias em Moçambique e a calamidade de sofrimento humanitário que nos mobiliza. Mas hoje há mais, ou não vivêssemos todos o suspense dessa novela em capítulos intermináveis chamada Brexit. Hoje, como se diz na gíria de telenovelas, houve capítulo duplo. Nesta fase, e fosse eu Britânica, já só pedia para que tudo acabasse a 29 de Março, sem acordo se necessário fosse, mas a telenovela tem de ter um fim; depois despedia os políticos que deixaram o país neste caos, indecisão e medo, e aproveitava para mandar os Donald Tusks deste mundo, ou melhor da EU, pentear macacos para bem longe de Bruxelas. 

No entanto foi um telefonema simples e curto que recebi que me apanhou de surpresa. Será um fait divers, (para usar uma expressão cara a Jorge Coelho) mas não estava preparada. Afinal, quem espera uma notícia assim? Neste mundo urbano e tecnológico em que tudo se programa não há espaço para estes imprevistos: não vou ter, na aldeia, os frangos campestres que encomendei para na Páscoa trazer para Lisboa. (Já congelados, claro, porque embora seja boa no manuseamento de facas, ando- no mínimo -  pouco treinada a matá-los e depená-los). Não há frangos tão simplesmente porque a raposa os apanhou e comeu. E não há nenhuma app que me valha. Raposas ...

19/01/19

Sábado de Manhã com Chuva

Sabia exactamente sobre o que ia e queria escrever. Pensei dedicar uma parte da manhã de hoje a fazê-lo, só que, sentada em frente do computador, perdi-me ... saltando sem nexo entre emails, actualidade, notícias, textos vários, vídeos, pesquisas, música, blogues. Tudo, qual Babilónia, se confunde em frente dum computador. Na nossa mente tanto cabe a vontade de perceber como é que esta receita de couve fermentada é diferente da já experimentada com sucesso, como cabe um momento de irritação com mais uma invenção do governo que, em vão, tento perceber. Inclusão? Mas o que é isso exactamente, e sobretudo, como se mede essa dita inclusão? Pelo número de alunos de cor, por turma, por ano? Por um rigoroso 50% de raparigas e rapazes? Por uma quota de ricos e pobres? Estas invenções e estes nomes fazem-me rir: são reveladoras do “ar dos tempos”, e porque esquecem que, de facto, tudo o que os pais querem saber é a taxa de sucesso da escola para entrada na faculdade. Tudo se resume a isso, por mais voltas ideológicas que o ministro queira dar. O governo pode decidir o que quiser, outras entidades farão um ranking baseado nos factos puros e duros, nas notas e no acesso à faculdade e será esse que os pais procurarão. 

Entre deambulações várias, a vontade de ouvir Debussy parece premente, nada que o youtube não resolva com ajuda de Martha Argerich. Aquela conta a pagar obriga a uma passagem pelo homebanking, numa manhã em que Maria João Rodrigues ocupa os sites informativos e em que me distraio com publicidade imobiliária mandada para o email – os preços das casas, pois, bem como as casas em si que parecem estar a ser feitas para investidores e não para pessoas. Depois de uma pesquisa na Wikipedia, (que nos redirecciona para outra e outra ...) percebo que já não é Debussy, mas Lizt que toca pois o youtube passa para o vídeo seguinte e nem pergunta se queremos ou não. Resta o consolo de (ainda) não ter tropeçado nem no Brexit nem no PSD. Confusos? Também eu. O “computador” parece um animal selvagem difícil de controlar ... não, isto não faz sentido nenhum, o computador é só uma máquina, não tem vontade própria, lembro-me. Que seja, mas confesso alguma dificuldade em perceber este comportamento errático em frente de um ecrã, e este deambular sem nexo, por muito definida que fosse a intenção primeira. O pior é que o tempo, o implacável tempo, escorre (cada vez mais rápido, sim, dizem que sim os físicos que o estudam) entre os dedos e os cliques do rato, e mal percebo que passou. 

Não escrevi nada do que tinha pensado, o que não será um problema. Em jeito de desculpa, deixo aqui em “copy/paste” esta pequena pérola encontrada na selvajaria de deambulações (com a pequena gralha): 


«Não sou dos que morrem de amores por Camões», diz Agustina. «Um poeta deve ser um mensageiro feliz; aquele que à nossa porta chega sem trazer a peste do seu tempo a turvar-lhe a pele. O que nos canta o melhor do seu coração para inspirar um sôfrego destino de felicidade.» Tenho andado à procura de uma boa forma de traduzir «spark joy», uma que transmita toda a intensa alegria despoletada por essa faísca e eis que encontro em Maria Agustina esta, que parece uma versão forte do lema de Marie Kondo: «inspirar um sôfrego destino de felicidade.» Perfeita. Camões não inspira, é claro, tal destino à autora de «A Sibila», e a navalha de Agustina é tão afiada quanto a de Occam: de todos os poetas, escolham-se os portadores de felicidade. O que deixa de fora, virtualmente, todos os poetas, esses pregoeiros do lado obscuro da alma humana, não só Camões. As estantes de poesia, vazias: Marie Kondo sentir-se-ia orgulhosa. Ah, desditoso paradoxo: o vazia gera vazio, o efeito da multiplicação por zero. A felicidade, essa, precisa de terreno mais fértil para nascer.
(http://xilre.blogspot.com/)

17/01/19

(Porto Out/18)

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