31/05/09

Guerra e Paz 2

“Sim, o amor (pensava ele, de novo com toda a clareza), mas não aquele amor que ama por um qualquer mérito, com uma qualquer intenção ou por um qualquer motivo; mas aquele amor que experimentei pela primeira vez quando, moribundo, vi o meu inimigo e mesmo assim o amei. Experimentei aquele sentimento de amor que é a essência da alma e para o qual é desnecessário objecto. Ainda agora tenho em mim esse sentimento ditoso. Amar o próximo, amar o inimigo. Amar tudo é amar Deus em todas as Suas manifestações. É possível amar de amor humano um ser querido; mas apenas o amor divino torna possível amar o inimigo. Foi por isso que tiver tanta alegria quando senti que amava aquele homem. (...) Amando com amor humano pode passar-se do amor ao ódio; só o amor divino é constante. Nada, nem a morte o pode destruir. É a essência da alma. Ora quantas pessoas eu odiei na minha vida! E, entre todos não amava nem odiava ninguém mais do que a ela.”
(...)
Naquelas horas de solidão, sofrimento e delírio depois do ferimento, quanto mais pensava no princípio novo do amor eterno que se lhe revelava, mais renegava, sem se dar conta, a vida terrena. (...) e com mais perfeição eliminava a barreira terrível que, sem amor, se ergue entre a vida e a morte.
Lev Tolstói, Guerra e Paz

Do Amor. O amor tal como o Principe Andrei o descobre quando jaz ferido depois da batalha de Borodino, e que lhe é revelado na sua essência divina, para lá dos motivos, das pessoas, dos “afectos”, e por isso também para além da vida e da morte tornando ténue, na sua presença, a separação que se faz entre uma e outra. Ao ler Guerra e Paz é impossível não pensar em Platão e na dimensão existencial que está para lá da vida material e que encaixa tão bem na fé e misticismo que atravessam esta obra e moldam as suas personagens. O Principe Andrei, um aristocrata culto, orgulhoso, e bem formado, mas algo rígido e cínico e com uma família peculiar: um pai racionalista e uma irmã mística, é outra das personagens fascinantes do romance. Ao longo da sua vida, opções profissionais (se é que se pode dar este nome às carreiras desta aristocracia que vive dos rendimentos das imensas propriedades e dos servos que as trabalham), ferimentos de guerra, amores e desamores percebemos que se vai moldando e adaptando às descobertas que faz sobre si, sobre a sua resposta à vida que vai vivendo, sobre a evolução do seu íntimo. Aliás este é um romance voyerista, porque entra e vê dentro da alma das personagens, alma essa que é, quase só por si e pela sua essência universal, a personagem principal do romance. Nada nos é poupado dos dilemas, descobertas, contradições, fraquezas e revelações das personagens, e claro, ad descoberta da sua “alma”. Estas personagens tão ricas e densas são irresistíveis na sua humanidade e complexidade que, de repente – e pelos instantes que dura a nossa ligação com a obra - até parece que esquecemos outras personagens de outros romances cuja forma, ao olhar do alto deste cume literário e filosófico, se torna, em perspectiva, linear, plana e previsível.

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