David Cronenberg, um realizador de que gosto (há já muito tempo), Michael Fassbender, um actor de que gosto (há pouco tempo) e Viggo Mortensen, outro actor de que já há muito que gosto sobretudo quando se junta a Cronenberg (Uma História de Violência, Promessas Perigosas), são convite irrecusável para ir ao cinema. Em tempos de filmes com deficit de inteligência, (podia dar uma ampla lista de exemplos recentes, mas não maço quem me quiser ler) decidi apostar neste, e valeu a pena – A Dangerous Method (Um Método Perigoso) é um bom filme. Cronenberg constrói narrativas em que evidencia o corpo humano, e através das suas personagens, ele gosta de testar, buscar e explorar, de formas distintas claro, os limites desse mesmo corpo, de formas por vezes espectaculares (A Mosca). Este filme, se não é diferente nessa exploração do corpo, dos seus limites, das suas pulsões, é-o do ponto de vista formal – menos efeitos, menos ‘chocante’, e é-o porque o ultrapassa essa busca corporal, o limite do corpo é o limite de si. A substância que lhe dá matéria é o desejo, ir ao limite do desejo ou esbarrar nas peias que impomos ou são impostas ao desejo. O desejo sexual é o mais óbvio no filme, mas não o único. O próprio desejo sexual é objecto de reflexão por parte das personagens que buscam o entendimento da essência da natureza humana das pulsões que fazem essa natureza. Interessante notar que, tal como o filme mostra, Sabina Spielrein, primeiro paciente de Carl Jung e depois sua colega, associa na sua pesquisa e trabalho – e aparentemente pela primeira vez na história da psicanálise – a pulsão sexual à pulsão de morte e de transformação. Os limites do corpo, do desejo, os limites do ‘ser’.
Sabina (uma competente Keira Knightley) sofre de um distúrbio psíquico e é tratada por Carl Jung (um Michael Fassbender impecável e muito convincente) e a sua terapia abre a porta a uma intensa relação entre ambos. Nela, Sabina ousa os limites e a essência do filme é o retrato, sem exageros mas de forma gráfica, da enorme cumplicidade de corpo e mente entre Sabina e Jung. Corpo e mente em transformação, e a dependência de ambos que cresce alheia ao olhar dos outros e longe dos constrangimentos que a sociedade impõe. Até um dia... porque Jung é mais contido que Sabina. Esta irá percorrer um longo caminho para lá dos limites físicos e no fim a mente começará a sossegar numa aceitável ‘normalidade’: regressa aos estudos tornando-se também ela uma psicanalista, e construirá uma vida profissional tendo tido contactos com Freud, e pessoal. Na cena final vemo-la grávida e, apesar de alguma nostalgia, ela sabe optar e conformar-se com as suas escolhas, num contraste profundo com a conturbada Sabina da primeira cena em que aparece no filme, em que os planos são dominados pela sua disfunção ‘física’, num momento ‘clássico Cronemberg’.
Jung, mais velho, moldado pela vida, pelo que a sociedade espera dele, é mais contido. No entanto está dividido e o seu desejo toma diversas direcções: em relação a Sabina a sua grande cúmplice, em relação à família que ele sente como um porto seguro, mas também de forma muito explícita em relação a Freud cuja aprovação, reconhecimento e amizade ele tanto procura e deseja. Os dois homens conhecem-se, correspondem-se, estabelecem uma relação, mas um dia tornam-se evidentes as divergências teóricas e profissionais, em relação aos conceitos e métodos, e esta divergência provoca um irreversível afastamento entre ambos. Na cena final do filme é Jung que, sem ter transposto (ainda) o limite de si, está fragilizado, perdido nas suas insatisfações e contradições, o seu desejo insatisfeito e preso no seu corpo. Agora não tem nem Sabina nem Freud. Também neste caso é evidente o contraste com o Jung seguro e senhor de si da primeira cena do filme em que ele e Sabina se encontram.
No filme Freud aparece como um objecto de desejo. Jung tal como, em menor grau, Sabina desejam a sua boa opinião e olham com reverência para ele tendo Sabina, por exemplo, exigindo que Jung esclarecesse de forma verdadeira Freud sobre o tipo de relação que ele e Sabina mantinham, e ambos, no decurso das respectivas carreiras profissionais na área da psicanálise, valorizam e desejam o reconhecimento de Freud. No entanto Freud é uma personagem secundária do filme, e é-nos apresentado como um burguês algo frustrado e prisioneiro de si próprio e do seu mundo. É um judeu e não um ariano (como lembra a Jung), tem filhos a mais num apartamento que considera pequeno (por oposição a Jung), tem dinheiro a menos, sente a falta do reconhecimento por parte de outras classes médicas e profissionais que crê merecer, e desconfia do olhar da sociedade sobre ele. A sua fragilidade é, no filme, explorada na sua vertente intelectual e pessoal, nos encontros, debates e conversas com Jung em que ele teme colocar-se numa posição intelectualmente secundária face a Jung. Este percebe e repara nessa recusa de uma maior abertura e uma entrega (também afectiva?) mais sincera, nomeadamente na recusa de Freud contar o seu sonho. Freud parece estar fechado sobre si, dominado pelas frustrações, descontentamentos e medos.
Ao olhar para cada uma das suas personagens, Cronenberg, numa narrativa segura e elegante, toca na essência da natureza humana, a pulsão de vida ou de morte, e na sua capacidade transformadora. Jung e Freud que estudam a psique, os comportamentos e os mecanismos da transformação do seu humano (através da terapia) não ultrapassam as suas contradições. Teoricamente são apologistas da libertação do ser e como profissionais ajudam os seus pacientes a libertarem-se das suas amarras como as frustrações, más memorias, obsessões, mas eles aparecem como sendo tão pouco livres e afinal não é só do corpo que são (somos) prisioneiros.