Com a morte de Margaret Thatcher é mais um pedaço do século XX que passa à História, ancorando-nos cada vez mais irremediavelmente no século XXI, uma evidência que nem sempre sentimos. Nada de errado nisso, afinal estamos vivos (se eu escrevo e se alguém me ler, é sinal que ainda cá estamos, e que Deus quiser, assim nos preserve muitos e muitos anos), a nossa perspectiva é que teima em ir atrás ao século XX. Às vezes penso que os anos que mais nos moldam e de onde o nosso olhar teima em partir (ou regressar) são os anos em que começamos a pensar que já somos adultos.
Quando chegou a minha vez, Margaret Thatcher estava lá, e eu também. Não deixou nada nem ninguém indiferente, aliás ela detestava a indiferença, a moleza, a falta de convicções e de acções, nomeadamente em relação aos do seu próprio partido a quem chamava “
wets”. Esse exacerbar das dicotomias, sem se preocupar com procurar consensos chocava quer uma mentalidade conservadora e à maneira menos abrupta dos
gentlemen elitistas da política (ela era oriunda da pequena burguesia), quer de uma mentalidade intelectual que se pretendia tolerante e aberta ‘à diferença’ e às minorias. A sua visão política contrariava a tendência ‘socialista’ que se vivia então (mesmo nos governos conservadores) nomeadamente em duas vertentes: a que permitiu um crescendo de custos de um estado social cada vez mais pesado, laxista e mais difícil de financiar (a célebre insustentabilidade do estado social); e a que fazia depender a política (e políticos) do partido trabalhista dos sindicatos e das suas associações, de uma forma que hoje é difícil conceber. Combateu com a determinação que todos lhe reconhecem ambas as frentes: reformou o estado privatizando, liberalizando, e iniciou sem piedade uma luta com os sindicatos que venceu, tendo reduzido consideravelmente a influência deles na política futura do Reino Unido, e tendo libertado o Partido Trabalhista do excessivo poder sindical (que o diga Blair). Na frente internacional é sobretudo lembrada por ter sido protagonista do desmoronar do bloco de leste, foi o principal líder ocidental a iniciar e manter um diálogo com a União Soviética e o bloco de leste. Não vacilava, não hesitava. Nunca foi muito popular, mas ganhava eleições.
Lembro-me bem como era bom discordar de Margaret Thatcher, essa filha de merceeiros que se ‘dava ares’, que ousava decidir e mandar, e que estava claramente (para tantos) above her station. Hoje, e para nosso mal, estamos reduzidos à pobre condição de discordar de políticos como Cameron ou Hollande, já para não falar daqueles que temos por cá. Entre Thatcher e estes últimos não é só um século que os separa, é todo um mundo. Independentemente de ter ou não gostado de todas as suas políticas, decisões e acções, hoje e para nosso conforto, percebemos que conhecemos uma grande estadista.