Ódio, demagogia e oportunismo (citando
Medeiros Ferreira) são as palavras certas. E por causa delas também eu me coloco ao lado de Cavaco Silva (numa altura em que preferiria não estar). Nos tempos que correm parece que determinadas personalidades públicas não têm ‘autoridade moral’ para apelarem à austeridade, ou para constatarem em voz alta o facto de que são afectados por ela, pois quando o fazem provocam fortes reacções hostis e de repúdio que se ouvem e lêem na imprensa, televisão e blogues vindos dos mais diversos sectores da direita, da esquerda, de conservadores a até dos ditos liberais. De repente, e de onde menos esperaria, espreitam as novas virgens ofendidas perante apelos naturais e desabafos compreensíveis (mesmo que inoportunos). Conceitos como ‘autoridade moral’ e atitudes à ‘virgem ofendida’ porque tingidos de demagogia e populismo merecem-me pouca simpatia.
Aliás nunca percebo como e quem define o que é isso de ‘autoridade moral’, quer qualitativamente quer quantitativamente. Quem é que pode apelar à austeridade ou constatar-se afectado por ela, que grupos de pessoas? Funcionários públicos? Desempregados? Professores básico? Secundário? Universidade? Empresários com empresas que dão lucros? Empresários com empresas à beira da falência? Empreendedores de sucesso? Reformados? Políticos com experiência governativa? Políticos com experiência partidária? Trabalhadores da indústria? Bancários? Banqueiros? Profissionais liberais? E a partir de que rendimentos é que se pode, ou não pode, fazê-lo? Há algum intervalo desejável, por exemplo entre o salário mínimo e os oitocentos euros? Quando não se percebe de que matéria é suposta ser feita essa ‘autoridade moral’ apregoada, é difícil evitar a demagogia, e fácil entrar naquele caminho por demais conhecido da hipocrisia, mesquinhice ou inveja. Quando se critica, por exemplo, (poderia dar outros exemplos), Manuela Ferreira Leite – por acaso, a política mais lúcida e que mais cedo apelou à necessidade de mudança de rumo do estado, tendo por isso sido alvo generalizado de chacota, nomeadamente por parte da comunicação social que nunca gostou do seu ‘estilo’ (outra palavra que, pelo menos em política, merecia ser detalhada) - dizendo que lhe falta a dita ‘autoridade moral’ para falar da austeridade porque recebe duas reformas, eu sinto-me fora do mundo. Será que com uma reforma se pode falar, mas duas não? Ou é o montante das reformas? Abaixo de mil trezentos e dezassete euros e oitenta e um cêntimos (número inventado por mim!) pode-se falar, mais do que isso já não? Ajuizar a ‘autoridade moral’ de alguém com base na presunção do que será a sua situação financeira actual é de um simplismo que arrepia. De repente uma personalidade pública com curriculum e história fica reduzida à ideia que se faz dela em função dos ordenados e/ou rendimentos que aufere. De repente começa-se a valorizar e enobrecer a pobreza e revisitando o Dr. Salazar dá-se-lhe o estatuto de detentora de ‘autoridade moral’. Sub-repticiamente e naquela ânsia tão estafada de igualitarismo não conseguimos exceder-nos e infelizmente não saímos do portuguesismo provinciano, periférico, demagógico e fácil nivelando por baixo. À pobreza, a sua virtude. Os ricos (pobres dos ricos portugueses, tão pouco ricos) simplesmente não têm ‘autoridade moral’, e são olhados com inveja e ódio.
De repente até parece que só os ‘pobres’ (alguém defina o que são os ‘pobres’, por favor) é que podem apelar à austeridade ou dizerem-se afectados por ela. Como se os restantes cidadãos caminhassem sobre as águas sem se molharem. O facto é que, com excepção daquelas pequenas minorias de pessoas que sabe enriquecer nos períodos difíceis (crises, guerras) e dos ‘ricos’, quer os novos – ver
aqui neste retrato traçado por Pacheco Pereira - quer os menos novos, ambos, segundo se diz, com depósitos nas Cayman, todos em Portugal são hoje afectados pela austeridade. São-no de formas diferentes, é certo, mas ninguém está imune, ninguém escapa. O IVA aumentou para todos, a baixa de consumo afecta as empresas (e empresários), o desemprego não abranda e já afecta todas as classes profissionais e sociais, o constante downgrading das instituições financeiras com a consequente dificuldade no financiamento das empresas e famílias afecta todos sobretudo a classe média/média alta. Pensar que a crise não chega a todos é viver fora do mundo.