23/04/07

Notas de viagem 7

O Diário de Anne Frank deve ter sido um dos primeiros livros “adultos” que li no início da minha adolescência. Já conhecia, nomeadamente dos filmes americanos que devorava e do que se falava em casa, os factos mais marcantes da Segunda Guerra Mundial e sabia o que era o Holocausto. A leitura do Diário marcou-me imenso e anos mais tarde ao relê-lo senti também uma cadeia de emoções. Das vezes anteriores em que estive em Amesterdão, nunca consegui ver a Casa de Anne Frank, por isso desta vez decidi que teria de o fazer, apesar de saber que pouco havia para “ver” (a visão é um dos sentidos que mais é estimulado numa ida a um museu: no museu vê-se). Não me enganei: havia pouco para ver. Uma estante que escondia umas escadas, e um aperto no coração ao subi-las. Uns espaços pequenos, um quartinho com fotografias de actores e actrizes coladas na parede a lembrar-nos que a adolescência é sempre a adolescência, uma cozinha/sala/quarto, um sótão e a dificuldade em perceber como oito pessoas ali viviam e conviviam. Mas o detalhe que mais me impressionou e ao qual maior valor simbólico atribuí, foi um caderno manuscrito de Margot, a irmã de Anne, com os seus trabalhos e deveres de Latim. A familiaridade desse objecto, o facto de mesmo em guerra, mesmo em privação, se manter a vontade de aprender de estudar, de se valorizar, o facto de se impor uma disciplina e uma normalidade, numa altura em que qualquer um “compreenderia” a “falta de motivação”, as “dificuldades” os “desajustes” as “dissonâncias” as “frustrações” as "depressões” ou outras desculpas com aval dos psicólogos de serviço é verdadeiramente comovente. Ali estava uma rapariga nova de uma família abastada a quem nada faltava e a quem o futuro sorria, perseguida, escondida, humilhada, privada da vida normal e de tantos bens materiais a que sempre teve acesso e sem saber o que o futuro lhe traria, a fazer trabalhos de Latim. De facto a casa tem pouco que “ver”, mas aquele caderno é um completíssimo tratado sobre a vida: é só querer ver.

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