30/11/11

Amanhecer 34

Hoje

Um Método Perigoso


David Cronenberg, um realizador de que gosto (há já muito tempo), Michael Fassbender, um actor de que gosto (há pouco tempo) e Viggo Mortensen, outro actor de que já há muito que gosto sobretudo quando se junta a Cronenberg (Uma História de Violência, Promessas Perigosas), são convite irrecusável para ir ao cinema. Em tempos de filmes com deficit de inteligência, (podia dar uma ampla lista de exemplos recentes, mas não maço quem me quiser ler) decidi apostar neste, e valeu a pena – A Dangerous Method (Um Método Perigoso) é um bom filme. Cronenberg constrói narrativas em que evidencia o corpo humano, e através das suas personagens, ele gosta de testar, buscar e explorar, de formas distintas claro, os limites desse mesmo corpo, de formas por vezes espectaculares (A Mosca). Este filme, se não é diferente nessa exploração do corpo, dos seus limites, das suas pulsões, é-o do ponto de vista formal – menos efeitos, menos ‘chocante’, e é-o porque o ultrapassa essa busca corporal, o limite do corpo é o limite de si. A substância que lhe dá matéria é o desejo, ir ao limite do desejo ou esbarrar nas peias que impomos ou são impostas ao desejo. O desejo sexual é o mais óbvio no filme, mas não o único. O próprio desejo sexual é objecto de reflexão por parte das personagens que buscam o entendimento da essência da natureza humana das pulsões que fazem essa natureza. Interessante notar que, tal como o filme mostra, Sabina Spielrein, primeiro paciente de Carl Jung e depois sua colega, associa na sua pesquisa e trabalho – e aparentemente pela primeira vez na história da psicanálise – a pulsão sexual à pulsão de morte e de transformação. Os limites do corpo, do desejo, os limites do ‘ser’. 

Sabina (uma competente Keira Knightley) sofre de um distúrbio psíquico e é tratada por Carl Jung (um Michael Fassbender impecável e muito convincente) e a sua terapia abre a porta a uma intensa relação entre ambos. Nela, Sabina ousa os limites e a essência do filme é o retrato, sem exageros mas de forma gráfica, da enorme cumplicidade de corpo e mente entre Sabina e Jung. Corpo e mente em transformação, e a dependência de ambos que cresce alheia ao olhar dos outros e longe dos constrangimentos que a sociedade impõe. Até um dia... porque Jung é mais contido que Sabina. Esta irá percorrer um longo caminho para lá dos limites físicos e no fim a mente começará a sossegar numa aceitável ‘normalidade’: regressa aos estudos tornando-se também ela uma psicanalista, e construirá uma vida profissional tendo tido contactos com Freud, e pessoal. Na cena final vemo-la grávida e, apesar de alguma nostalgia, ela sabe optar e conformar-se com as suas escolhas, num contraste profundo com a conturbada Sabina da primeira cena em que aparece no filme, em que os planos são dominados pela sua disfunção ‘física’, num momento ‘clássico Cronemberg’. 

Jung, mais velho, moldado pela vida, pelo que a sociedade espera dele, é mais contido. No entanto está dividido e o seu desejo toma diversas direcções: em relação a Sabina a sua grande cúmplice, em relação à família que ele sente como um porto seguro, mas também de forma muito explícita em relação a Freud cuja aprovação, reconhecimento e amizade ele tanto procura e deseja. Os dois homens conhecem-se, correspondem-se, estabelecem uma relação, mas um dia tornam-se evidentes as divergências teóricas e profissionais, em relação aos conceitos e métodos, e esta divergência provoca um irreversível afastamento entre ambos. Na cena final do filme é Jung que, sem ter transposto (ainda) o limite de si, está fragilizado, perdido nas suas insatisfações e contradições, o seu desejo insatisfeito e preso no seu corpo. Agora não tem nem Sabina nem Freud. Também neste caso é evidente o contraste com o Jung seguro e senhor de si da primeira cena do filme em que ele e Sabina se encontram. 

No filme Freud aparece como um objecto de desejo. Jung tal como, em menor grau, Sabina desejam a sua boa opinião e olham com reverência para ele tendo Sabina, por exemplo, exigindo que Jung esclarecesse de forma verdadeira Freud sobre o tipo de relação que ele e Sabina mantinham, e ambos, no decurso das respectivas carreiras profissionais na área da psicanálise, valorizam e desejam o reconhecimento de Freud. No entanto Freud é uma personagem secundária do filme, e é-nos apresentado como um burguês algo frustrado e prisioneiro de si próprio e do seu mundo. É um judeu e não um ariano (como lembra a Jung), tem filhos a mais num apartamento que considera pequeno (por oposição a Jung), tem dinheiro a menos, sente a falta do reconhecimento por parte de outras classes médicas e profissionais que crê merecer, e desconfia do olhar da sociedade sobre ele. A sua fragilidade é, no filme, explorada na sua vertente intelectual e pessoal, nos encontros, debates e conversas com Jung em que ele teme colocar-se numa posição intelectualmente secundária face a Jung. Este percebe e repara nessa recusa de uma maior abertura e uma entrega (também afectiva?) mais sincera, nomeadamente na recusa de Freud contar o seu sonho. Freud parece estar fechado sobre si, dominado pelas frustrações, descontentamentos e medos. 

Ao olhar para cada uma das suas personagens, Cronenberg, numa narrativa segura e elegante, toca na essência da natureza humana, a pulsão de vida ou de morte, e na sua capacidade transformadora. Jung e Freud que estudam a psique, os comportamentos e os mecanismos da transformação do seu humano (através da terapia) não ultrapassam as suas contradições. Teoricamente são apologistas da libertação do ser e como profissionais ajudam os seus pacientes a libertarem-se das suas amarras como as frustrações, más memorias, obsessões, mas eles aparecem como sendo tão pouco livres e afinal não é só do corpo que são (somos) prisioneiros.

28/11/11

Cores de Outono 10

Mark Rothko
No. 37/No. 19 (Slate Blue and Brown on Plum)

27/11/11

Vai Repetindo e Lembrando


Numa semana em que já não se pode ouvir falar mais de fado e ouvir mais nenhum fado, lembrei um dos poucos (se considerarmos o universo de fados) que nunca me canso de ouvir.

Excessos de Pólen

Fiquei surpreendida por não ter visto/lido/ouvido nenhum comentário sobre a forma como foi iniciada a grande manifestação contra o governo egípcio na praça Tarhir. 


Vi na televisão a imagem de toda uma multidão – sem excepções – a participar nas orações. Não vi outros que não muçulmanos: não vi pessoas de pé que não se ajoelhassem em determinadas alturas da oração. A coreografia concertada (e a absoluta unanimidade) da oração numa manifestação política contra um governo militar, pró-democracia, e a favor de um governo civil, é arrepiante. Estranho é também o facto de não ter visto mulheres (ao contrário do que se passou nas manifestações de Maio) a tomarem parte nos protestos, e respectivas oraçães(!). As pretensões democráticas de tais manifestantes (e respectivas reivindicações) deixam muito a desejar, e são exactamente o que nós não gostamos em democracia.  Como não temer o pior? Querem que saia o governo militar para que ceda o lugar a um governo ‘civil’ religioso? 

Foi tão óbvia para mim a leitura desta manifestação, que me admira ela não ter sido objecto de mais discussão comentário e crítica. Pelos vistos a opinião pública ‘ocidental’ continua anestesiada com o excesso de pólen da ‘primavera árabe’. Tenho vontade de perguntar, num exercício meramente especulativo, se aqui em Portugal (por exemplo) alguém estranharia que uma manifestação política de protesto (como no dia da greve geral, por exemplo também) fosse iniciada com uma missa celebrada por um bispo de Lisboa. Eu, católica estranharia. Eu não o quereria. Mas isso digo eu, que para muitos parece ser normal iniciar manifestações políticas com orações.

26/11/11

Horae Subsicivae 2


Simon de Vos
Gathering of Smokers and Drinkers

O que Sobra

Há uns meses assistíamos e enumerávamos criticamente os famosos encontros a dois entre Merkel e Sarkozy. Indiferentes à irritação de muitos europeus que se perguntavam se ‘isso’ é que era a União Europeia, eles encontravam-se (os inúmeros ‘beijinhos’ trocados à vista de todos ilustram as ocasiões) e cochichavam, mas aparentemente nunca tais encontros pareceram dar fruto, e entenda-se aqui 'fruto' como uma qualquer decisão (já nem sou exigente, uma qualquer). Aposto que ficarão para a história como isso mesmo: cochichos.

Depois desses encontros a dois ilustrados a ‘beijinhos’, a nossa atenção foi desviada unicamente para a senhora Merkel, cada palavra, cada tique, cada entoação, cada gesto: começa a confusão pois ao estarmos atentos é-nos impossível não ver as contradições, as incertezas, a demagogia, a fraqueza disfarçada pela retórica. Os comentadores, os artigos de opinião por essa Europa fora tentam interpretar as intenções, o que vem a seguir. Grécia, Itália, Espanha (por ordem cronológica e mediática), bem como a iniciativa de Durão Barroso quase que não importavam por si, mas sim pela reacção da senhora Merkel que cada vez mais se funde e identifica com o seu país a Alemanha. O que é que a Alemanha acha? O que é que a Alemanha pensa? A Alemanha isto, a Alemanha aquilo. Posteriormente começam os sussurros sobre a França e a Bélgica.

Nesta semana reataram os encontros a dois, e Merkel e Sarcozy falam de revisão dos tratados, falam do BCE. Será que finalmente se vê o fruto de tantas conversas a dois? Creio que virá tarde demais. A partir de agora já todos os olhos se viram para a Alemanha e começam as apostas sobre quanto tempo levará até que a crise da dívida soberana atinja a Alemanha. O que sobrará desta Europa (UE), que os estados criaram e que conhecemos, é agora a questão pertinente.

18/11/11

Entardecer 23

"Esta Ridícula Ilusão que em Portugal se Chama Teatro"

Ainda a propósito de Teatro de do D. Maria, excertos (meus) de um inspirado texto (certeiro e divertido) sobre a ilusão do teatro em Portugal de Vasco Pulido Valente no jornal Público de hoje. (sem link para o texto)

(…) para muita gente o teatro na aparência (repito: na aparência) não exige uma educação e uma competência técnica verificável e universal. Na música, no ballet ou na dança existem critérios que definem um profissional com uma certa objectividade. Mas basta que se defina um “palco”, que na prática não passa de um espaço arbitrariamente definido, seja ele qual for, para, em teoria, o que sucede lá dentro seja, ou possa ser, declarado teatro. E, se alguém protesta contra a qualidade do putativo “espectáculo” que lhe oferecem, é por uma única razão: não conseguiu penetrar a intenção estética do exercício.

Este estatuto privilegiado (…) fez com que proliferassem dezenas de grupos de teatro por todo o país, mesmo nos mais remotos cantos da província. Ainda por cima, por razões de ignorância e popularidade, certos ministros compraram a eito os velhos cine- teatros de 1920 e 1930, de que as câmaras estavam mortas por se livrar, dando um centro e um sítio a quem se sentia (e quemse não sente?) com uma vocação “dramática”.

(…) Nada disto, claro, serve, ou jamais serviu, rigorosamente para nada. Em 37 anos não apareceu uma única obra decente de dramaturgia portuguesa. (…) Até o Teatro Nacional D. Maria II, na impossibilidade de se ficar eternamente no Frei Luís de Sousa, apresenta geralmente traduções. De resto, não lhe falta só dramaturgia portuguesa. Também lhe falta público. Uma noite no D. Maria é uma noite soturna. Francisco José Viegas cortou o orçamento (um milhão de euros) deste longo equívoco. Foi inteiramente justo. E, quando Diogo Infante resolveu recorrer à intimidação, não hesitou em o demitir. Chegou a altura de acabar com esta ridícula ilusão que em Portugal se chama “teatro”.
Vasco Pulido Valente no Público de hoje.


17/11/11

Ontem ao ler a notícia de que o Director Artístico do Teatro Nacional suspendera a programação só tive um pensamento: têm que o pôr na rua! Hoje de manhã fiquei satisfeita quando ouvi que isso mesmo tinha sido feito. Este tipo de atitudes de pseudo ‘rebeldia’ e de desafio ‘às instâncias superiores’ impressiona-me zero e é-me muito pouco simpática, sobretudo quando não se trata de adolescentes. Ficam então as ‘divas’. Nada contra, antes pelo contrário, (dão colorido à vida) desde que o sejam à sua própria custa. Diogo Infante claramente não se enxerga e deve achar que o Estado lhe deve muito e país também. Ele é que, no exercício do seu cargo, deve. A suspensão da programação, com tudo o que isso implica é uma atitude muito pouco elegante, mas sobretudo irresponsável e leviana demonstrando entre outras coisas nenhum respeito pelos contribuintes. E se o é em quaisquer circunstâncias, é-o ainda mais em tempos de contenção, de dificuldades, de ‘vacas magras’. Nunca lhe passou pela cabeça apresentar a sua demissão, mas ameaçar e tentar encostar o Estado à parede cancelando a programação, sim. Feio, muito feio.

14/11/11

Cores de Outono 9

13/11/11

Indignation 2

(Primeira parte aqui)

Esta é uma narrativa sobre o último ano da vida de Marcus, e nada neste período o marca mais do que a sua primeira experiência sexual. Marca ao ponto de determinar a futura sucessão de eventos que, de forma inabalável, o condiciona nas suas opções. Num capítulo único, combinando de forma surpreendente os seus ingredientes preferidos, sexo e morte, Roth muda o tom da novela. Da pura narrativa passamos para um tom mais reflectivo e confessional. O jovem Marcus, já morto, olha para trás e analisa cada detalhe desse primeiro e surpreendente encontro sexual. Porquê? Como? Como ler o gesto de Olívia?

Even now (if “now” can be said to mean anything any longer), beyond corporeal existence, alive as I am here (if “here" or “I” means anything) as memory alone (if “memory”, strictly speaking, is the all-embracing médium in which I am being sustained as “myself”), I continue to puzzle over Olivia’s actions. Is that what eternity is for, to muck over a lifetime’s minutiae?

O capítulo é intenso , quer porque essa “minutiae” é exposta de todas as formas que Marcus (já morto) consegue explorar, quer porque ele se interroga sobre a natureza do seu estado e a natureza da morte,

(...) I have a strange suspicion that you can die here too (...),

o papel da memória enquanto parte desse estado,

(...) But dream or no dream, here there is nothing to think about but the bygone life. Does that make “here” hell? Or heaven?

o juízo final (so to speak),

And the judgment is endless, though not because some deity judges you, but because your actions are naggingly being judged for all the time by yourself. (...) retelling my own story to myself round the clock in a clockless world.

Neste mesmo capítulo, e apesar das dúvidas e interrogações que o gesto de Olívia lhe suscitam, percebemos a inevitabilidade (obrigação?) do jovem Marcus se apaixonar por Olívia, a rapariga da cicatriz. O ‘pathos’ da novela tem a sua origem neste momento, a novela atinge o seu clímax e muda o tom: a intensidade duplica. A vida, para Marcus, deixa de ser feita de ideias claras e simples e decisões lineares, para ganhar em perplexidade, em textura e densidade.

É neste registo intenso e quase urgente de se sentir ‘ser’ e ‘viver’ que eu aprecio mais Roth, e Indignation faz jus ao autor. Um livro que não se pousa enquanto não se acaba: a palavra certa no sítio certo, as frases cheias de ‘meaning’ que se sucedem, a intensidade de estar vivo, de ser jovem e de ter o sangue ‘quente’. Todos estes ingredientes conjugados em rara intensidade, mas de uma forma tão desprovida de pretensão e esforço que, fosse eu escritora, poderia invejar. Assim limito-me a gozar.

11/11/11

Dando Excessivamente sobre o Mar 61

Charles Cottet
Evening Light at the Port of Camaret

03/11/11


Como não sou (ainda) bruxa, não previ este novo acto do drama grego de ‘sim referendo’, ‘não referendo’, em que o protagonista – de tanta volta e contravolta que tem dado e de tanto psicodrama encenado - provavelmente já não sabe quem é (se é que alguma vez o soube). Até eu estou tonta e perdida, e não sou grega. Uma coisa é certa: não gosto da atmosfera que antecede a tempestade: o ar é pesado, o ambiente abafado, os pés que se arrastam, a pressão que aumenta (atmosfericamente falando ela baixa, claro) e já só queremos uma boa chuvada, ventos e trovoadas. Em relação à UE sinto isso mesmo: acabe-se o medo, os paninhos quentes, as palmadinhas nas costas, as conversas de pé de orelha Merkel/Sarkozy, os juízos, as ameaças, as lições de moral; venham as crises e as dissidências depressa, zanguem-se as comadres, deixem o euro desvalorizar. Veremos se o ar não fica mais leve e se não podemos finalmente começar o trabalho de reconstrução.

02/11/11

Amanhecer 33

Na semana passada amanhecia assim...

01/11/11


Vale o que vale, mas esta divisão de campos na hora de votar a adesão da Palestina à UNESCO, mostra como a União Europeia é mais uma (des)União que fala a múltiplas vozes defendendo múltiplos, e por vezes contraditórios interesses, e mostra como uma ‘união’ é algo do domínio da utopia e dos discursos inflamados. Se hoje os problemas financeiros e económicos surgem como o pomo de discórdia entre os 27/17, esta notícia mostra a amplitude da dissonância. Não fiquei surpreendida; fiquei-o só porque já nenhum estado nem ninguém a tenta disfarçar. A união pode fazer a força, mas não se faz à força (de tratados “porreiro, pá!”, por exemplo).

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