23/05/13

Mau Tempo No Canal

Mil anos que vivesse, Margarida não esqueceria a noite do baile no meio daquelas jaquetas dos rapazes do Capelo e das saias rodadas das vizinhas da Rosa Bana. Sentia-se ali como a prancha que vem do alto mar e encontra enfim uma posição capaz de fixar as gaivotas e a sua própria massa de seivas, as suas fibras, os furos a que agarram conchinhas e algas verdes. Lapuzes, sim; brutinhos e suados. Mas eram vivos; as velhas dividiam-nos em “machos” e “fiminhas” nas conversas da pedra do lar. Era a sua gente, através de Manuel Bana, que andara com ela ao colo e tinha confiança no seu paladar para provar a alcatra, e no seu gosto para espetar alegra-campos no pão de cabeça das esmolas. De resto, aqueles dois dias e duas noites no Capelo eram sobretudo o campo, os cerrados de milho já alto e embandeirado, o moinho do Cabouco onde se metera a ler uma tarde inteira e de onde descobrira um ponto colado ao horizonte – um grande navio de vela que seguia a favor do vento para a banda das Flores. Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal

Aos vinte anos tinha lido já muitos livros e visto muitos filmes. O que não sabia então é que, anos depois ao reler os ditos livros e rever os ditos filmes, iria dar-me conta do pouco que na altura percebia e apreendia do que lia e via e, no entanto, de como foi importante ter lido e ter visto mesmo (sobretudo porque?) sem ter percebido e apreendido. E hoje não sei é o que pensarei quando, daqui a uns anos,  reler e a rever de novo. Voltei a pensar nisso ao reler Mau Tempo no Canal, por muitos considerado o melhor romance de língua portuguesa do séc. XX. Dei comigo inúmeras vezes a ler parágrafos e páginas mais do que uma vez. Depois do espanto perante a qualidade e beleza da escrita de Vitorino Nemésio, queria só saboreá-la nesse romance que ia lendo devagar e sem vontade de acabar, de tal forma me deleitava com o esplendor que a língua portuguesa (e neste texto refiro-me à especificidade  que melhor conheço - o português que se fala em Portugal) assume nas suas mãos. Já não estava habituada a tal espanto perante a qualidade da escrita e perante a beleza da língua... tão mal tratadas andam ambas: a qualidade do que se escreve, a língua que se fala e escreve. 

Assim vale a pena ler em português, coisa que – sabe quem me costuma ler – não faço com muito frequência. A leitura do romance serve para evidenciar – como se fosse necessário - os ditos maus-tratos a que anda submetida a nossa língua nos nossos dias. A confusão gerada pelo agora sim, agora não, talvez sim, talvez não, do acordo ortográfico, o ‘politicamente correcto’ da intenção e a leviandade da decisão e implementação vem juntar-se a um generalizado falar mal e escrever pior que ouvimos e lemos todos os dias, na rua, na televisão, nos jornais, na internet. O vocabulário segue modas à medida que se vai retraindo. Menos palavras em circulação, mais frases feitas de simples estrutura e tempos verbais que não exijam cuidado. Muito desleixo, poucas concordâncias. São também os ‘haviam’, os ‘póssamos’, os ‘téni’, os ‘pogramas’ ou os ‘há-des’, entre outros, que se ouvem a cada instante. Já nos meios a que chamamos ‘elites’ (eli...quê?) abundam os ‘ajustamentos’ e ‘reajustamentos’ uns meses depois, as ‘estruturações’ e respectivas (meses depois) ‘reestruturações’, as ‘alavancagens’, as ‘flexibilidades’, os ‘concensos’, um sem fim de vocábulos ambíguos do terreno do economês e politiquês que propiciam o discurso redondo dos intervenientes políticos. Fica difícil perceber o sentido, e em última análise a verdade do que dizem, se é que realmente querem dizer alguma coisa. 

Mau Tempo no Canal é, e isto dito por alguém que não se deixa levar por exacerbações de patriotismo, é um bálsamo de portugalidade, e lê-lo, entre outras virtudes de que depois darei conta, lembra-me a belíssima língua que temos e do que há de bom em ser português. Afinal, em tempos austeros em que Portugal pouco mais parece ser do que uma teimosa nuvem densa e cinzenta, Vitorino Nemésio limpa-nos a alma.

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