No princípio do ano de 2013 pediram-me, no âmbito de um caso em julgamento, para escrever um testemunho para o tribunal. Fi-lo eu e mais uma dúzia de pessoas, quase todas mulheres. A parte contrária tentou desacreditar e descredibilizar os testemunhos usando o argumento que eram quase todos feitos por mulheres, e (pior ainda, se fosse possível), mulheres “de uma certa idade”. Na altura achei tão ridículo tal argumento que só poderia rir, perguntando-me então qual seria a boa idade para uma mulher testemunhar e, claro, se os homens também teriam boas e más idades para serem testemunhas. No meu íntimo, na altura, desejava que fosse uma juíza, e já agora também “de uma certa idade” a julgar o caso. Meses depois, na altura do julgamento, soube que sim, que era uma juíza e também ela “de uma certa idade”.
Esta pequena peripécia, no entanto, não me deixou tranquila. É inquietante pensar que nesta Europa do séc. XX sobrevivem preconceitos suficientemente enraizados ao ponto de gente educada e civilizada (assim o pensam e assim os pensamos) os utilizar, não verbalmente em jantares de amigos nos quais alguns preconceitos velhos e novos convivem com leveza e provocação, mas de forma escrita e em situações formais, nomeadamente num processo de justiça, tentando a sua validação. O caso Bárbara Guimarães, Manuel Carrilho veio, meses mais tarde, confirmar esta (e outras) inquietação: a necessidade de, sem olhar a meios, desvalorizar a palavra da mulher, usando desculpas e razões várias nomeadamente por ser “de uma certa idade” (aquela história que ele contou de BG ter dificuldade em aceitar os 40 anos).
A vida para as mulheres não é fácil. Se são incompetentes, inconvenientes, irritantes são-no em primeiro lugar por serem mulheres e por isso são ridicularizadas. Os argumentos, as ideias, vêm depois, quando os há. Não importa que seja Assunção Esteves (cita mal e é inoportuna), Pussy Riot (manifestam-se com pouca roupa), Miley Cyrus (preciso mesmo dizer?), Isabel Jonet (parece não perceber o peso das palavras), Ana Gomes (uma voz e estilo irritante), Bárbara Guimarães (preciso mesmo dizer?), Kate Winslet (recentemente sob ataque por ter três filhos de três pais diferentes), ou tantos outros nomes que poderia citar. Primeiro vem o preconceito e desvalorizam-se os argumentos, as opções, os combates. Não é assim com os homens, não é assim com os homens incompetentes, os ridículos, os imbecis, os irritantes, que existem alegremente sem serem objecto de tanto preconceito e de tanta desvalorização sem argumentos. Com as mulheres o debate, quando o há, vem só depois do preconceito. As mulheres nunca têm o mesmo direito à incompetência, ao ridículo, à imbecilidade que os homens têm. E nunca têm o benefício da dúvida – a sociedade não é tolerante com elas. Se é assim na sociedade ocidental que se quer igualitária, o combate pelos direitos das mulheres nas outras sociedade é ainda um percurso duro.
Tivemos em 2013 exemplos bastantes: na Índia assistiu-se a um grande número de manifestações pelos direitos das mulheres no seguimento de casos de violações colectivas, num primeiro momento desvalorizadas pela polícia, mas que posteriormente foram conhecidos tendo sido os agressores objecto de condenação; no Médio Oriente a Primavera Árabe deixou um rasto de inverno no que respeita a segurança e direitos das mulheres como pudemos constatar por inúmeros testemunhos do que se passa sobretudo no Egipto e na Tunísia (onde as primaveras foram mais floridas). Na Arábia Saudita as mulheres manifestam-se conduzindo, na África do Sul homenageiam Mandela pelo papel que teve na luta feminista. Também em 2013 se falou mais sobre violência domestica, tráfego de mulheres, a crise e as mulheres... E gostaria de deixar uma nota final sobre a publicidade, ou as publicações, nomeadamente as de moda e estilo de vida. Nunca como este ano li e vi tantos artigos e vídeos que denunciam as barbaridades que sistematicamente se fazem ao corpo das mulheres, perpetuando uma imagem irreal e irrealista: com o Photoshop afinam-se e alisam-se rostos, ancas, alongam-se pernas quando as mulheres são “gordas”; ou apagam-se os sinais das costelas, da bacia e de outros ossos, corrige-se a flacidez da pele, dá-se relevo ao peito, enchem-se as pernas quando é necessário disfarçar a excessiva magreza das modelos; ou simplesmente apagam-se os sinais do tempo dos rostos e corpos, numa descaracterização que assusta pois às vezes mal se reconhecem as pessoas retratadas.
2013 foi o ano da Mulher. 2013 mais uma vez mostrou, pelo menos a mim, o longo caminho a percorrer no sentido de estabelecer a dignidade da mulher, recusando preconceitos fáceis, e combatendo as leis difíceis.