06/08/18

Manhã Submersa

Hoje de manhã, oiço na rádio (Antena2) que um pintor, de que falavam e cujo nome não cheguei a ouvir, terá pintado muitos touros num determinado período. A explicação não se fez esperar: o seu pai terá estado “ligado à temática taurina”! Assim dito. 

Estar ligado à temática taurina é uma interessante expressão que pede descodificação. Afinal o que poderá ser “estar ligado à temática taurina”? Difícil. Por muitas voltas que dê à cabeça, por muito que peça à minha imaginação para se soltar, apenas me ocorrem ser toureiro (a pé ou a cavalo), ser frequentador assíduo de touradas, conhecedor e apreciador, (se não aprecia não conhece nem sabe) de touradas, empresário na área das touradas, o que deve também pressupor conhecimento e gosto da “temática taurina”. 

Esta expressão tão forçada e artificial fez-me lembrar uma notícia que vi há uns meses num telejornal, em que se abordava o problema das gaivotas na cidade do Porto, embora me atreva a dizer que não é só no Porto que as gaivotas são um problema, mas fiquemos por essa notícia. Depois de explicar o problema, falam de soluções, algumas vagas, ou como dizem, a longo prazo, e outras mais de curto prazo são “atitudes que possam minimizar o problema”, sem, no entanto, explicar o que quer isso dizer de facto e que medidas são. Assim, e deixando mais uma vez a imaginação correr o seu curso, não vejo que outras soluções possam existir que não passem por uma de duas situações: ou que matem as gaivotas, ou que controlem a sua reprodução. Não me parece que existam outras formas de convencer as gaivotas a abandonar os meios urbanos. 

Deixando de lado o pintor que pintava touros e as gaivotas em terra, o que percebemos é que vivemos tempos difíceis para a forma como nos exprimimos. Aliás até diria que vivemos tempos complicados para a liberdade de expressão, não só na forma de expressar opiniões, mas sobretudo, e o que mais me preocupa, na forma como contamos a realidade ou relatamos factos. A factualidade, ou a realidade, ou as coisas serem o que são e como são, hoje tem de se curvar perante o politicamente correcto. Não podemos chamar tourada à tourada, não podemos dizer que queremos exterminar uma parte da população de gaivotas, nem pensar. Temos, sim, e cada vez mais, que contornar a linguagem, arranjar eufemismos, expressões vagas, longas, complicadas e pomposas para evitar dizer as palavras que não podem hoje ser ditas e que não deixam de aumentar. Vai ser difícil mantermo-nos actualizados. 

Não se pode mudar a realidade, mas meu Deus, a ginástica que é feita para que, ao nomear essa mesma realidade, ela caiba nessa forma estreita e mesquinha que é a da linguagem permitida hoje. Não se muda a realidade? Azar! Que se mude a forma de a narrar. Depois admirem-se.

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