09/12/18

Os Esquecidos

Quando li o último parágrafo deste post lembrei dois incidentes recentes que se passaram comigo e que nos mostram a outra face da Via Verde, net banking ou facturas sem papel - uma face anacrónica por onde a modernização não passou e que mostra que eficácia é apanágio apenas de alguns sectores da sociedade. Realmente, pensando bem, quem é que num caderno reivindicativo se lembra de falar da eficácia e modernização da polícia? 

No verão passado recebi em casa uma carta que me era dirigida, pesada das várias folhas de papel que continha. O remetente era da Doca Pesca, Portos e Lotas, Lda. Intrigada, pois não tenho nenhum tipo de relação com docas, portos e lotas, abri e vi: 

Uma primeira folha que era uma notificação com um número de processo. O primeiro parágrafo reza assim: "(...) fica V. Exa. Notificada, dos factos imputados, da qualificação jurídica em que incorre para, querendo (...) se pronunciar no prazo de 10 dias (...)". Depois a carta continua rica em fraseado mas destaco apenas a parte em que explicam muito bem as diferentes formas de pagamento. Para já não sei do que sou acusada, nem quanto tenho de pagar. Na segunda e terceira folhas de papel, num total de três páginas e meio escritas, consta o Procedimento de Contraordenação em que – finalmente – se explica a razão de contraordenação: o estacionamento num período que não foi superior a 1h e meia, no Portinho da Ericeira. Lembrei-me do dia, lembrei-me que o espaço era amplo, que havia lá três ou quatro carros e espaço para trinta, achei que poderia lá estacionar. Uma coisa simples. Descrevem em detalhe o local, o carro (aliás a viatura) e explicam que não tinha autorização para estacionar lá e nesta parte são invocadas as autoridades: a Autoridade Marítima Nacional, a Polícia Marítima, O Comando Local de Cascais, Extensão da Ericeira. Depois segue-se uma parte chamada Do Direito em que referem todos os artigos de todos os Decretos-Lei que regulamentam esta situação. No final fica estabelecido o valor da coima: 25€. É assinado pela Instrutora do Processo. A quarta folha, em papel timbrado do Ministério da Defesa Nacional, Autoridade Marítima Nacional, é o Auto de Notícia assinado por um agente, que repete (para quem lê, pois o processo foi ao contrário) o facto em detalhe. Passei os olhos, nem li. A quinta folha é uma cópia da fotografia do meu carro lá estacionado. Paguei logo consciente de que os 25€ não pagam o trabalho e esforço destes serviços neste caso, e temendo que se não o fizesse pudesse receber em casa uma carta com o triplo das folhas de papel. 

O outro caso passou-se talvez há um ano, uma ida ao hospital da Luz em que deixei lá um livro. Era um livro pouco apetecível, era em inglês e de teologia, e não um José Rodrigues dos Santos, por isso, e sabendo que lá estava, não me preocupei em o ir buscar de imediato. Quando lá voltasse iria aos perdidos e achados buscá-lo, e foi o que fiz, mas fi-lo três meses e uns dias depois de o ter deixado lá e a política de perdidos e achados do hospital é a de entregar à polícia tudo o que lá ficou para além dos ditos três meses e que ninguém tenha ido buscar. 

Fui à esquadra de Carnide onde os objectos perdidos do hospital são entregues. Demorei um pouco a ser atendida e quando fui, disseram-se ser outro agente a lidar com esses assuntos. Esperei pelo agente que se mostrou simpático e que, na hora, encontrou o livro. Estendeu-o e percebi tratar-se mesmo do meu livro, mas ao pegar nele agradecer e preparar-me para o guardar e sair, foi-me dito que não podia sair e tive que devolver o livro. Há que lavrar o auto, diz-me. Precisei de me identificar e voltei a esperar. Não foi o agente a fazê-lo, ele não lavra autos, foi outro mais novo, com ar de quem faz os fretes e fá-los devagar e com muita intenção e muitas dúvidas ortográficas (tem a minha simpatia) e sintáticas, sinal de que não dominava a gíria dos autos e outros documentos policiais como daqui a uns anos o fará certamente. Ir buscar o livro revelou-se uma tarefa complexa que me manteve na esquadra mais de 45 minutos. Parece que na longa lista de reivindicações de manifestantes e grevistas contra os políticos em geral e os que governam em particular deveria constar a modernização e eficácia da polícia e outros serviços de segurança.

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