11/10/10

Crónicas duma Constipação

Uma forte constipação atirou-me, no fim-de-semana, para um sofá de onde poucas vezes me levantei. Em frente, uma televisão; ao meu lado um comando. Quando o mundo se reduz assim porque não apetece nem se consegue fazer nada, quando o ecrã do computador brilha demais e os livros exigem a disponibilidade mental que a constante respiração apenas pela boca impede, resta-nos a televisão. Fiquei, no entanto, a conhecer a extensão da pobreza da programação televisiva que temos, sobretudo ao fim-de-semana durante o dia.

Entre um Tony Blair, (uma entrevista na SICN da qual vi apenas uma parte) que não entusiasma, um Paulo Bento que ganhou com tranquilidade e um Passos Coelho que, se não se põe a pau, ainda aparece mais vezes na televisão do que Sócrates, sobra pouco. Filmes que apeteça ver (ou rever), nem sinal; a informação e o debate, praticamente reduzidos a futebol; e séries, as do costume com muitas repetições. Vi, estupefacta, umas cenas (que outra palavra poderei usar?) inenarráveis no canal Q (meo) com trintões – senão já quarentões - a fazer de conta que são adolescentes, nuns gags sem nexo nem humor ou numas conversas de humor (?) sem ponta do dito, mas com ar sisudo e muito intelectual, de literalmente fazer adormecer qualquer um (quem paga programação desta deveria fazer psicoterapia, ou muito sexo, ou ambos de preferência). Bem mais empolgante são os programas do Dr. Oz (SIC Mulher) que até atordoam com tanto grito histérico de senhoras pré-obesas, de revelações surpreendentes, de horror de recentes descobertas, e finalmente - qual cavaleiro em cavalo branco, de tantos “life saving” conselhos e práticas a adoptar “já”.

Há algo de perverso nestes programas do Dr. Oz. Nunca neles se equaciona a nossa condição de seres mortais e partem do princípio de que estamos todos dispostos a vender a alma ao diabo, qual Dr. Faust, por mais um pouco de vida. Vendêmo-nos por qualquer preço: x gramas de fibra diária ou 10.000 passos diários, também, medidos no pedómetro - um gadget indispensável para a filosofia de vida Oziana. Deve ser esta omissão da mortalidade enquanto única certeza da vida, e parte dela, a responsável pelas enormes audiências audiências: esta pequena mentira, esta ilusão. Como iludir a ideia da morte. Como não morrer. Nunca em momento algum daqueles programas a certeza da nossa mortalidade é reconhecida, a certeza de que um dia morreremos todos: Dr. Oz incluido. Pelo contrário, todo o pressuposto do programa está em adiar a morte, um mês, um ano, uma década, de preferência até ao infinito. Igualmente perverso são as absolutamente imperdíveis e essenciais “life saving” recomendações que temos que aprender para salvar a nossa vida e a dos outros. Se não a salvarmos, culpa nossa que não seguimos as recomendações: não bebemos sumos de vegetais, não comemos peito de galinha a todas as refeições, não fizemos a dança do ventre, não tomamos vitamina C, não soubemos fazer a respiração boca-a-boca, esquecemos os abdominais, e não desinfectamos as mãos devidamente. Hoje, tal como ontem, (só a forma difere um pouco) todos os caminhos vão dar à culpa. O programa do Dr. Oz está cheio dela. Sucesso garantido.
(continua)

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