Vale a pena (re)lembrar que não há verdades absolutas sobre a arte, sobre a forma de ler cada manifestação artística seja ela a música, o cinema, a literatura, a pintura, etc. Neste blogue todas essas “leituras”, opiniões, gostos, que partilho com quem me lê, assumem o seu esplendor subjectivo: minha leitura, minha opinião, minha sensibilidade, minhas memórias. Posso não descurar as outras que li ou ouvi e me influenciaram, mas a minha é a principal, é a mais importante, e a determinante neste blogue pessoal.
Ando há algum tempo com o conceito de “Final Feliz” na cabeça por causa de dois livros que li (deles darei conta em breve) e de um filme que vi, Hereafter de Clint Eastwood. Nunca me teria passado pela cabeça pensar em “Final Feliz” a propósito do filme não tivesse eu tropeçado neste pedaço de crítica de Vasco Câmara que diz, entre outras coisas: "um "happy end" que é das coisas mais feias que Clint já filmou". O argumentário do crítico chocou-me, pois fiquei com a sensação de que navega a um nível de superficialidade e simplismo surpreendente. Esquecendo a Cinderela e afins, o que será um "Happy End" bonito para o crítico? Já pouca crítica leio, deveria deixar de o fazer de vez.
Este filme de Eastwood tem, dizem, a nível formal algumas inovações (se é que se pode chamar a estas opções inovações) face à habitual simplicidade narrativa dos seus filmes anteriores: uns efeitos especiais (o tsunami), e uma narrativa a três planos – apesar de linear. Mas é um filme simples, não há suspence, não há surpresas. Cedo percebemos que as narrativas se cruzarão, e o filme vive para além desse aspecto formal em que o “Final Feliz” se encaixa. Vive do percurso cheio de negações, de interrogações e de dúvidas face à morte que de formas distintas habita cada personagem e as afasta do mundo e dos outros. Por isso o “Final Feliz” género “casaram e viveram felizes para sempre” que o crítico terá visto e nos faz crer ser, na sua visão redutora e superficial, simplesmente não é. É sim, um “Final Feliz” no sentido do apaziguamento que as personagens finalmente começam a encontrar, do início da aceitação de si próprias dependente da aceitação da morte em si.
As três personagens estão ou entram em conflito com os seus demónios: desta vez não estamos no domínio dos demónios interiores psicológicos mas noutro tipo de interior, aquele que silenciosamente se nos impõe pela inevitabilidade: a morte que está em nós desde o dia em que nascemos. A estas personagens coube-lhes o dom ou a maldição - a grande dicotomia do filme, de a sentirem tão de perto e tão presente. Porque a sentem perto e presente perdem trabalho, não tecem laços afectivos, ou são incapazes de intimidade.
Excelentes interpretações, uma realização enxuta, uma sensibilidade única a abordar um tema tão pouco “estético” e tão pouco “cómodo”. Mas se não for antes, que pelo menos depois dos oitenta anos (a idade de Eastwood), tudo seja permitido, até (ou sobretudo) pensar a morte com a mesma aparente simplicidade com que se compõe a música do filme. “There’s a Portuguese director, Manoel de Oliveira, who’s still making films at over 100 years old,” Eastwood continues. “And I plan to do the same thing.” Oxalá.
Mais sobre o filme: aqui.