13/02/11

Finais Felizes 2

- E não desejas nada? – perguntei
- Nada do que seja impossível – respondeu, adivinhando o meu sentimento (...)
- E não tens pena de nada do passado? – continuei a perguntar-lhe, sentindo que o meu coração se apertava cada vez mais.
Ficou pensativo. Percebi que ele queria responder-me com toda a franqueza.
- Não! Replicou.
- Não é verdade! Não é verdade! – disse eu, virando-me e olhando-o nos olhos. Não tens pena do passado?
- Não! – repetiu. – Estou-lhe grato, mas não lamento nada.
- Não gostarias de fazê-lo voltar?
Virou-se de mim e começou a olhar para o jardim.
- Não o desejo da mesma maneira que não desejo que me cresçam as asas – disse ele. É impossível!
- E não reprovas o passado? Não te censuras a ti próprio nem a mim?
- Nunca! Foi tudo pelo melhor!
Lev Tolstói, A Felicidade Familiar

Do mesmo modo que Tolstói descreve a anatomia de uma morte em “A Morte de Ivan Ilitch” (uma obra-prima relida recentemente) em “A Felicidade Familiar” – um outro longo conto – ele descreve a anatomia de um amor. De um forma quase despudorada ele invade a intimidade das personagens, Macha (a narradora) uma jovem de dezassete anos e Serguei Mikkáilitch um homem mais velho e mais vivido, e disseca cada olhar, cada frémito, cada hesitação, cada pulsão, cada sentimento. Descreve-nos o enebriamento da paixão, a exaltação da cumplicidade que se tece em cada expiração, essa necessidade permanente de estarem juntos, essa solidão que se cria à volta dos dois que nada mais querem sentir e ver Senão a sua imagem espelhada no outro. Mas o conto não termina aqui.

O conto expõe com uma sensibilidade extraordinária os sentimentos mais íntimos e mais profundos das personagens sem juízos, nem lições, e de forma detalhada seguimos o percurso do casal que começa a ser feito de afastamentos, equívocos, intenções mal interpretadas, para percebermos o que é que acontece depois do confortável “final feliz” que tão bem conhecemos na versão “casam e são felizes para sempre”. Ele explica de forma comovente como se constrói e de que matéria é feita essa felicidade e percebemos que o sofrimento e a renúncia (nomeadamente ao desejo do passado, e ao romantismo juvenil) são as matérias principais dessa construção e do apaziguamento e aceitação para então termos um verdadeiro final feliz.

Olhei para ele, e de repente senti uma leveza na alma: como se me tivessem extraído aquele nervo moral que me doera e me fizera sofrer. Percebi nítida e tranquilamente que o sentimento daquele tempo desaparecera e era irrecuperável, tal como o próprio tempo passado, que fazê-lo voltar não só era impossível, mas ainda penoso e constrangedor. E também, será que aquele tempo que me parecia tão feliz era na verdade perfeito? E que longínquo, que longínquo era aquilo!...
Lev Tolstói, A Felicidade Familiar

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