Às vezes sinto que precisava de ser antropóloga para estudar estes “dias sem...”: dias sem compras; dias sem carro minimizando a poluição; dias sem cigarros ou o do ‘não-fumador’; dias sem calças que é aquele em que meia dúzia de parvos andam de boxers ou cuecas no metropolitano; dias (enfim, horas), sem electricidade em que outra meia-dúzia de sonhadores acendem velas e jogam charadas,... e hoje o ‘dia sem sapatos’ de que se fala aqui. As motivações para estes ‘dias sem...’ aparentam ser suficientemente certinhas, bondosas e bem intencionadas, os ingredientes certeiros para desgraça. As pessoas riem deles mas não se indignam, brincam mas não protestam, e nem sequer questionam a sua existência. Eu começo a sentir repulsa por essas iniciativas, e gostava de perceber o que está na génese deste padrão de aparente privação tão voluntariamente aceite e promovido por uma sociedade hedonista e superficial, mas que permite que proliferem estas iniciativas de forma quase invasiva. Parece que arranjamos sempre novas formas de expiar a culpa. Não há maneira de nos livrarmos dela.
Estes ‘dias sem...’ soam-me cada vez mais a uma versão laicizada, republicana, socialista, globalizada e muito, muito politicamente correcta de outras privações vindas de outros tempos e de outros espaços: o jejum e a abstinência determinados pela Igreja Católica, bem como as renúncias de Quaresma que alguns católicos ainda hoje praticam. Estas privações têm má imprensa, e são consideradas repressivas, continuando a ser olhadas com desconfiança. Sem um segundo de hesitação, prefiro estas últimas e o que está na sua génese, do que o folclore que tenta dar-se importância e que fabrica os ‘dias sem...’