03/01/07

"Gramática" Transcendente

A comunicação social em geral e também alguns blogues têm dado notícia desta mensagem Papal de 1 de Janeiro para o Dia Mundial da Paz, destacando sobretudo a frase em que Bento XVI, sobre o direito à vida, denuncia “o destroço de que é objecto na nossa sociedade: junto às vítimas dos conflitos armados, do terrorismo e das mais diversas formas de violência, temos as mortes silenciosas provocadas pela fome, pelo aborto”. A menção do terrorismo e do aborto na mesma frase terá suscitado polémica inferindo-se que o Papa terá estabelecido uma comparação entre ambos os actos. A leitura integral da mensagem, que é, na minha opinião, bem estruturada, rica e de fácil leitura, permite um juízo sobre o que é dito, não só menos superficial, como esclarecedor da forma racional e espiritualmente exigente deste homem de Fé pensar e de olhar para o mundo. No entanto, e voltando ao direito à vida, proponho este excerto como forma de contextualizar a visão de Bento XVI sobre esse direito à vida.

Uma paz verdadeira e estável pressupõe o respeito dos direitos do homem. Mas se estes direitos se baseiam numa concepção débil da pessoa, como não hão-de ficar também eles enfraquecidos? Daqui se vê claramente a profunda insuficiência de uma concepção relativista da pessoa, quando se trata de justificar e defender os seus direitos. A aporia neste caso é patente: os direitos são propostos como absolutos, mas o fundamento aduzido para eles é apenas relativo. Causará surpresa se, diante das exigências “incómodas” postas por um direito ou outro, aparecer alguém a contestá-lo ou decidir ignorá-lo? Somente radicados em instâncias objectivas da natureza dada ao homem pelo Criador, é que os direitos a ele atribuídos podem ser afirmados sem medo de contestação.

Bento XVI aborda aqui, mais uma vez um tema que lhe é caro (quem leu Ratzinger conhece-o): o do relativismo moral que, neste caso, se revela insuficiente para um coerente respeito dos direitos do homem. Assim sendo, a morte de um ser humano e o consequente não respeito pela vida, Graça do Criador, viola o direito absoluto à vida humana. Bento XVI, neste texto, usa argumentos teóricos fala como um intelectual, filósofo, teólogo, fala em princípios em valores; não lida nem analisa fenómenos políticos ou sociais. Não explora a psicologia, a sociologia, não faz história. Mas, do que está escrito, infere-se que o mal que fez Saddam Hussein é irrelevante para a defesa do direito à vida enquanto absoluto, o mal que os terroristas queiram castigar com os seus actos é igualmente irrelevante como defesa de um acto que tira de forma deliberada a vida de tantos. Também o dilema existencial ou financeiro ou outro que determina quem decide interromper uma gravidez é fraco fundamento para a violação do direito à vida.

No entanto, e para que não se leia na minha interpretação deste texto de Bento XVI qualquer tipo de fundamentalismo, que não seja a minha crença no direito à vida, ou qualquer tipo de arrogância de quem detém a verdade e se sente intocada por dilemas de que tipo sejam, deixo um outro excerto desta mesma mensagem que nos leva ao outro lado, que permite um olhar menos teórico e mais humano para o tomar de uma decisão, e para um acto:

A “gramática” transcendente, ou seja, o conjunto de regras da acção individual e do recíproco relacionamento entre as pessoas de acordo com a justiça e a solidariedade, está inscrita nas consciências, nas quais se reflecte o sábio projecto de Deus. Como recentemente quis reafirmar, «nós cremos que na origem está o Verbo eterno, a Razão e não a Irracionalidade».

Para os crentes, a consciência individual é então local privilegiado do projecto de Deus, e é aí que Deus, na sua infinita misericórdia, nos acolhe e nos ama cada minuto de cada dia. Esta é a “gramática” transcendente que tem uma face tão pouco visível nas nossas sociedades ocidentais, que este Papa, e o último, cada um do seu modo não se cansam de mostrar.

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