As mulheres são conhecidas por olharem para um armário cheio de roupa e dizerem “não tenho nada que vestir”. Não sou eu que vou desmentir esse cliché, mas eu padeço também de outro mal: olhar para as estantes cheias de livros e dizer “não tenho nada para ler”. De vez em quando sou apanhada “desprevenida”, quando algo acontece naquele planeamento mental sobre o que quer e vou ler, pois normalmente tenho uma “wish list”. Às vezes, num processo mental qualquer que me escapa, perco-a, e fico a sentir que nada tenho para ler, coisa que fisicamente não é verdade: ainda não li todos os livros que tenho. Os contos são sempre uma tábua de salvação: servem de pausa entre os meus “desejos planeados” de leitura que podem ser vários, contraditórios e a precisar de negociação e distancia para decidir.
Num desses momentos vi-me perante Nouvelles Orientales, uns contos fantásticos de Marguerite Yourcenar com um pano de fundo que vai do Mediterrâneo ao Extremo Oriente. Lembrei que a conheci e li, em francês, muito cedo com uns livros improváveis de que pouco se fala, mas que me fascinaram: Alexis ou le Traité du vain combat, e Le Coup de Grâce (só muito depois li L’Oeuvre au Noir, e depois ainda Mémoires d’Hadrien, por exemplo). Lembrei o fascínio com que li Alexis, uma obra rara de uma extraordinária sensibilidade e profundidade que ainda considero uma pequena obra-prima e talvez a minha primeira abordagem em literatura à homossexualidade. Sempre gostei da densidade e alguma secura da sua narrativa e da sua escrita viril. Estes contos fantásticos não fogem à regra: há sempre uma crueldade visceral e linear, quase que diria natural no sentido de que é assim que é suposto acontecer, que mais cedo ou mais tarde se manifesta e que move as personagens nestes contos fantásticos. E é esse o ingrediente que nos prende, surpreende, arrepia.